"Nesse dia, o filho de Ventura, pobre, malcriado, limitado e complexado se arrumou para ir à festa.Todos nós teríamos que subir a Serra do Rendentor, como era chamada. Lá estava a Capelinha onde se faziam orações e se pagavam promessas.A estrada era de barro e com muita poeira. Lá ficava também a casinha onde funcionavam as transmissões da Rádio Difusoura.O menino Heráclio - desobedecendo a gramática e usando o pronome em pessoa diferente - não tinha um chinelo para por nos pés. Porém, estar descalço não me incomodava uma vez que, na minha cultura, o importante era estar bem vestido e com o cabelo cortado na moda.Pois bem! Ao chegar no topo da serra, todo mundo estava entrando na casinha dos transmissores.Havia um tapete na porta de entrada, do tipo capacho, e como todos estavam com os calçados empoeirados, limpavam os pés antes de entrar.Eu nunca tinha visto um tapete na porta de qualquer lugar, e fiquei horrorizado pelo fato de ver que todos o sujavam, lhe esfregavam os pés, sem se importar com a sujeira nele deixada.Na minha cabeça, aquele tapete não deveria ter aquela serventia. Fiz diferente, pensando que estava sendo educado e cuidadoso: Pulei o tapete. Ao sair pisando naquele taco encerado, absolutamente polido, fui deixando a marca dos meus pés descalços e sujos de barro.De repente ouvi alguém aos berros, gritando para todo mundo ouvir: Moleque mal educado, olha só o que você fez! E dali fui expulso sem saber o porquê.Apoderou-se de mim uma grande tristeza, tive vontade de me recolher, de não participar mais de coisa alguma. Mas a possibilidade de poder assistir as três bandas de música que iriam se apresentar, a Procissão da Bandeira, a missa campal, os pastoris infantis, os teatrinhos de fantoche e os carrocéis, tudo isso me atraia muito, e mesmo desgostoso e humilhado resolvera ir em frente.Restava agora cortar o cabelo para ficar bonito na festa, mesmo faltando uma sandália nos pés.Encontrei um barbeiro e, quando me sentei para cortar o cabelo, notei que aquele fígaro puxava uma das pernas quando contornava a cadeira que havia me sentado. Apesar de não ser tão inteligente - e não podia ser tendo nascido onde nasci, e ainda mais sem escola - era muito curioso. Sempre queria saber de tudo, e no caso do barbeiro não foi diferente: quis saber o que teria acontecido a ele..Ele não fez cerimônia e me disse ter sido uma doença que no tempo de hoje poderia ser um acidente vascular cerebral (AVC), ou outra qualquer da mesma natureza, capaz de causar paralisia em membros inferiores. Mas não quis saber muito dos detalhes da doença, o que eu estava mesmo interessado em saber era se antes daquela paralisia ele já cortava cabelo.Ele me disse que não. E disse que havia aprendido a cortar cabelo para ganhar algum dinheiro sem precisar de muito esforço físico, pois naquela profissão ele só fazia arrastar a perna ao redor do cliente.Fiquei calado e pensativo... E não demorou muito para que fosse assaltado por uma idéia horrível que minha mente fabricou: E se um dia eu tivesse aquela doença? E se alguma coisa me acontecesse, como aconteceu ao barbeiro, como é que eu iria ganhar algum dinheiro? Ah, Meu Deus! Eu tinha que aprender a cortar cabelo, aquilo era urgente!Passou a festa, mas aproveitei pouco. A humilhação de ter sido expulso dos transmissores da Rádio, a possibilidade de ficar paralítico ...Ao chegar em casa não me esqueci que eu teria de aprender a cortar cabelo, porque poderia me acontecer perder o movimento de uma das pernas, ou mesmo das duas, quem saberia?Pois bem! Certo dia ia passando em frente da minha casa um moreno menor do que eu. Ele ia cortar o cabelo e estava com cincoenta centavos na mão.Tentei convencê-lo de que eu saberia cortar o cabelo dele. Ele relutou, mas acabou cedendo quando eu lhe expliquei que cortaria o cabelo de graça e depois a gente comeria os cincoenta centavos de cocada.Negócio feito. Acontece que tudo que eu tinha de instrumento para cortar aquele cabelo, ainda mais crespo, pois o menino era descendente de escravo de engenho oiteiro, era a tesoura (cega) da minha mãe. Cortei o cabelo do infeliz mas ficou cheio de "caminhos de ratos". Foi o corte de cabelo mais desgraçado que o mundo já pode ver.Em seguida a vítima foi para casa e, como morava a menos de meio quilômetro da minha, logo ouvi os alaridos do choro do pobre moleque. A mãe dele estava quebrando uma vara no espinhaço dele.Mais tarde a mãe dele veio à minha casa. Meu pai vinha chegando do roçado com um feixe de lenha na cabeça, graças a Deus estava sóbrio e, como já disse, ele era um homem bom quando não estava embriagado.Feita a denúncia pela mãe do garoto, meu pai pediu-me explicação. Contei toda aquela história do barbeiro de Limoeiro, falei do meu temor de ficar paralítico e da vontade de aprender cortar cabelo para me prevenir.E aí meu pai teve uma idéia brilhante: Foi à casa da vizinha, devolveu os cincoenta centavos à mãe do garoto e lhe disse:- Não gaste mais um tostão com corte de cabelo dos seus meninos, mande todos lá pra casa que aquele bandido do Heráclio já recebeu o castigo que merece: Ele vai passar dois anos cortando o cabelo de todos, de graça!Confesso que o castigo foi grande, talvez tivesse sido melhor uma surra, pois eu passei a cortar os cabelos de mais de dez moleques entre irmãos e primos. Em compensação a notícia se espalhou e eu passei a cortar outros tipos de cabelo, mais lisos, fiz uma enorme freguesia com a vantagem de cobrar mais barato, pois, enquanto os outros cortavam por CR$ 1,00 eu só cobrava a metade do preço.E o meu maior consolo era saber que ficar puxando uma ou duas pernas, agora, já não era mais problema, pois eu já tinha uma profissão adequada: Era cabelereiro!"